Pandemia na sala de aula






Mensagem aberta de Sara Arrigoni, professora de Ensino Fundamental, na Lombardia, Itália, publicada originalmente em italiano, no dia 5 de março de 2021, em seu Facebook

Tradução: Roberta Gonçalves
Revisão: Gillo Brunisso, Foto: Felipe de Souza / Divulgação.




Quinta-feira, 4 de março de 2021


12:04






Dario me escreve uma mensagem de texto "As escolas vão fechar a partir desta noite". Sem pontuação ou comentários. Minha resposta é igualmente seca: "Tem certeza?"
"Sim".
Estou na sala de aula de uma escola em Bérgamo, daquela Bérgamo que sofreu e continua sofrendo muito. Estou corrigindo os cadernos dos meus alunos da quarta série.
Eu viro o iPad para meus colegas sentados à minha frente. “A partir de amanhã, estaremos em casa”, digo. "Leiam".
A notícia corre rápido e, em poucos minutos, todos já sabem. Os professores do Ensino Médio também acabam sabendo disso. E, nos andares superiores do colégio, os zeladores, o diretor e as secretárias já sabem. A senhora que limpa as salas de aula vai saber, o faz-tudo que está podando as plantas também. As mães que pegam seus filhos pequenos às 12h25 sabem disso, os pais que começam a ligar para a secretaria já estão sabendo. Os avós entendem que, como soldados na guerra, serão novamente convidados a "estar prontos". Em questão de minutos, todos sabem.










12:25


Volto para a aula e vou almoçar com a turma.
“Professora Sara, hoje almoço perto de Paola , mas amanhã, vou almoçar perto de você”. Foi quando lembrei: “Nossa! As crianças ainda não sabem de nada”.
No almoço, a situação é quase cômica. Tem polenta com queijo Branzi. Quer coisa mais típica de Bergamo do que isso? Polenta é meu prato favorito. Normalmente, eu teria ficado feliz com esse menu, por mais estranho que possa parecer, até nós professores temos nossas preferências. Eu me atiro como uma criança faminta sobre o prato de polenta, esperando que isso acalme meus nervos e silencie meus pensamentos por um momento. Mas a sensação que experimento é muito desagradável.
Era amarga, aquela polenta. E nauseante. Engoli aquelas garfadas como se fosse a pior comida que já comi. No entanto, era polenta. Sempre a mesma. Era eu que estava diferente.









13:45


Voltamos para a aula após o intervalo, como todas as tardes. Aí, o dilema. Digo a eles ou não digo? Dois segundos de um “branco”. Digo. Porque respeito a inteligência deles. E porque as más notícias machucam menos quando compartilhadas com as pessoas que amamos. Não posso mentir sobre uma coisa tão grande. Não posso prometer que amanhã almoçaremos juntos, que iremos ler "As Crônicas de Nárnia", como todas as terças-feiras, e brincaremos com os jogos de bastão durante o intervalo. Não posso e não quero. Melhor uma verdade que machuca do que uma mentira que pode provocar algo ainda pior.
Peço que as crianças se sentem e digo que precisamos conversar sobre algo importante.
Uma menina mais afoita do que as outras levanta a mão e diz: "Talvez, na segunda-feira, nos coloquem em zona vermelha". Respondo que as escolas não fechariam na segunda-feira, mas no dia seguinte. O silêncio foi ensurdecedor.

Busco o olhar dos meus colegas da classe, como se quisesse ter um ponto de apoio, no entanto, não consigo me agarrar. A partir daí, acontece de tudo.
Os alunos começam a levantar as mãos em busca de explicações, as vozes se exaltam, alguém começa a chorar. A abordagem inicial é um convite à calma. Eu e meus colegas nos revezamos, tentando tranquilizar a todos, dizendo que não será como em março do ano passado, que nós, professores, hoje, estamos muito preparados, que todos levarão o material para casa e que estamos prontíssimos.
Mas isso não ajuda a acalmá-los. Eles sabem disso, e eu também sei.








Reprodução Facebook



Eles sabem do esforço que fizeram para manter sempre a máscara. Sabem o que é respirar o mesmo ar podre por horas. Aquela máscara que, com paciência, adaptamos todos os dias, porque as máscaras fornecidas pelo governo não servem se você tem uma cabeça grande; e se tem uma cabeça pequena, elas caem.
Eles sabem que o gel que esfregaram nas mãos 20 vezes por dia e os deixou com bolhas não serviu para nada. Aquelas bolhas que pediam à professora para curá-las, colocando outro desinfetante. Engraçado, né? Um produto para desinfetar uma ferida causada por um desinfetante álcool gel. Não dava para passar mais álccol, então, a professora, que é idiota mas que ama demais seus alunos para negar esse pedido, esvaziava a garrafa de álcool e a enchia com água e amor. E do que adiantaria eles saberem disso? Foi a alma deles que ela curou, não a pele.
Eles sabem o que significa não se tocar por meses, o que significa não se abraçar, não se apertar, não rolar juntos no campo.
Eles sabem o que significa levar tudo da escola para casa todos os dias, com uma mochila pesada, livros e tudo mais porque “o que sobra e não pode ser higienizado deve ser jogado fora”.
Eles sabem o que significa cantar silenciosamente "parabéns pra você" nos aniversários, porque não é permitido cantar em sala de aula e nos limitamos a emitir sons de boca fechada. Mas tudo bem, queremos apenas festejar. Somos felizes assim mesmo.
Eles sabem o que significa estar sempre com as janelas abertas. Sempre. Em qualquer clima. E quem não acredita, não os viu chegar à escola com botas lunares nos pés ou escrever com luvas nas mãos.
Eles sabem o que significa não poder compartilhar uma bala, um lanche, uma sobremesa com os amigos. Eu os vi com meus próprios olhos colocando um pedaço de biscoito na mochila do outro ou usando a página da lição, que acabaram de receber da professora, para enrolar batatas fritas e entregar a um amigo. Porque deixar um companheiro sem lanche é mais grave do que quebrar uma regra.
Eles sabem o que significa brincar sem jogos, fingir que luta, brincar de pega-pega sem se tocar ou jogar futebol sem bola.








Sara Arrigoni. Créditos: Felipe de Souza










“Tenho medo”, diz Alice enquanto chora. “Porque tive muita dificuldade no lockdown e fiquei sozinha em casa”.
"Tenho medo de nunca mais voltar", intervém Viola

As crianças recém-chegadas não falam, apenas choram. Logo agora, que já fizeram alguns amigos?
Leio a raiva, a tristeza, a decepção em seus olhos. Fazer tanto para depois voltar a uma situação que você não queria: voltar a ficar sozinho.
O formigueiro à minha frente não para. Colocam na mochila tudo o que encontram: garrafas vazias, pedaços de papel, clipes quebrados, como moradores que se preparam para escapar de uma casa que logo vai desabar.
Tento outra estratégia para acalmá-los: firmeza, autoridade, censura. Falo para eles que também precisamos crescer um pouco, que somos maduros, que temos sorte de poder fazer ensino remoto, porque muitas escolas não poderão fazer e, ali sim, a coisa vai ficar feia. Mas não é o nosso caso. Nós estamos prontos. E será por pouco tempo. Mas não consigo passar nenhuma credibilidade. E eles sabem disso.

Prometemos que não os deixaremos sozinhos, que esperaremos todos. Que faremos tudo o que puder e, quando não for o suficiente, faremos mais. Digo a eles que já sabemos como será. E talvez seja esse o ponto: eles já sabem como será. E será feio, difícil, alienante.
Estão com medo.
Eu também estou.
E, apesar de sempre dizer a eles que o mais importante é falar a verdade, desta vez, não consigo.
Não digo a eles que tenho medo.
Falo que estou tranquila. Minto, e eles acreditam em mim. Porque foi a professora que disse. E a professora não conta mentiras.









14:45


Estou saindo da sala de aula. Minha hora acabou e, daqui a pouco, vai chegar a professora de música. Uma garotinha se levanta para me abraçar. Instintivamente, abro os braços, todos se levantam. Não posso. Mando beijos ao vento, dizendo que nos encontraremos mais tarde, na videoaula, e fecho a porta rapidamente. Não pude abraçá-los. Idiota novamente.









14:50


Fecho a porta do carro. Finalmente posso chorar.