Água sem desperdício: um novo começo para agricultores do sertão






No interior do Ceará, grupo de estudantes cria sistemas simples de irrigação que estão mudando a vida de pequenos produtores, enquanto o nordeste brasileiro busca subsídios na Itália para financiar novo projeto. Por lá, também foi criada uma máquina movida à energia solar que promete purificar mais de 20 mil litros de água


Texto: Roberta Gonçalves
Fotos: Gillo Brunisso, / Divulgação




Iguatu CE, 13/08/2020

Ela sempre foi a grande protagonista da história. Na vida nômade dos homens pré-históricos, nas civilizações antigas do Egito que cresceram em torno do rio Nilo ou nos sofisticados sistemas hídricos dos incas, no Peru, a água sempre esteve presente. E, com o passar dos séculos, a humanidade conheceu também as agruras da sua falta. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), até 2030, todo o mundo deverá enfrentar um déficit em torno de 40% de água. Para driblar esse quadro, aceleram-se iniciativas de seu reuso alternativo no Brasil e na Itália. O país das termas milenares e dos aquedutos romanos, recentemente, em 2017, viveu um dos momentos de maior escassez hídrica de sua história.

No Brasil, um oásis de ideias brota na aridez do sertão cearense. Em Iguatu, a 380 km de Fortaleza, florecem lindas hortaliças, graças a sistemas de irrigação de baixo custo, com microaspersor e sensor de umidade. Criado por um grupo de estudantes, com palito de pirulito, arame e pregos, o projeto “Mudas” já beneficia a mais de 7 mil pessoas no Brasil. Agora, alça voos mais altos, a caminho da Índia. Na esfera governamental, o Consórcio do Nordeste trabalha em um projeto integrado de abastecimento e reuso de água para eliminar a necessidade de carros-pipa. O pontapé inicial foi dado no ano passado, na Itália.










Na Itália, nordeste brasileiro busca financiamento, enquanto italo-brasileiro cria alternativa para purificar a água








“Por falta d'água perdi meu gado, morreu de sede meu alazão”. Esses versos do mestre do baião Luiz Gonzaga e do compositor Humberto Teixeira, em 1947, já cantavam, em Asa Branca, a luta do homem local para sobreviver à aridez do sertão nordestino. Já a grande seca que atingiu a região, em 1915, foi narrada pela escritora cearense Rachel de Queiroz no livro O Quinze, em 1930, inspirado na infância da própria autora.

Algumas décadas depois, os cenários reais descritos na música e na literatura mudaram um pouco, como observa Kevin Brasil, lider do grupo de estudantes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), que desenvolve o projeto “Mudas”, em Iguatu:

– Já foi bem pior. Hoje, existe muito poço tubular feito pelas prefeituras ou pelos próprios moradores. Contamos também com carros-pipa, por um custo de R$140 reais, e as escolas são diretamente abastecidas pelas prefeituras – avalia.

Porém, se depender do governo estadual cearense, o uso de carros-pipa pode estar com seus dias contados. Pelo menos, foi essa a mensagem que passou uma comissão integrada pelo governador do Ceará, Camilo Santana, em visita à Itália e outros países da Europa, em novembro do ano passado. Durante a viagem organizada pelo Consórcio Nordeste, governadores da região se reuniram, em Roma, com representantes do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola das Nações Unidas (FIDA). Na ocasião, Santana apresentou a proposta de um projeto integrado de abastecimento de água que tornaria desnecessário o uso de carros-pipa no Nordeste brasileiro.

A julgar pela crise hídrica vivida pela Itália nos últimos anos, é possível que o Brasil conte com alguma empatia para obter tal financiamento, ainda sem novas informações oficiais. Conhecido por suas águas termais e aquedutos, o Bel Paese também experimentou um forte período de escassez hídrica pouco tempo atrás, sendo que 2017 foi o mais seco do país desde 1800. Conforme dados do Consiglio Nazionale delle Ricerche (CNR), o Conselho Nacional de Pesquisas de lá, o ano de 2017 registrou uma média de chuvas 30% abaixo dos níveis entre 1971 e 2000, apresentando a pior seca da Itália em mais de dois séculos. Tentando driblar esse quadro, uma alternativa criada por um italo-brasileiro tem aquecido as discussões: um computador termodinâmico capaz de purificar e dessalinizar a água, além de gerar energia elétrica e fazer conexão com a Internet. A máquina movida a energia solar é fabricada pela empresa Watly, fundada pelo economista brasiliense, criado na Itália, Marco Attisani: "O equipamento grande custa 750 mil Euros e é capaz de purificar mais de 20 mil litros de água a cada 8 horas, além de gerar 100kW de energia elétrica por dia. Meu sonho é levá-lo também para o Brasil, país onde nasci", vislumbra Attisani.






Marco Attisani, fundador e CEO da Watly. Foto: Gillo Brunisso










Em zona intermediária da seca, Iguatu mergulha em sistemas de baixo custo






Do outro lado do oceano, com metas mais modestas, o projeto cearense "Mudas" também quer melhorar a vida de quem vive com pouco ou quase nada de água, no sertão nordestino do Iguatu. A cerca de 380 km de Fortaleza, a região é banhada pelo Rio Jaguaribe e convive com uma média anual pluviométrica é de 805,3mm. Sua economia, que se baseia na agricultura de arroz e algodão, entre outros setores, torna o uso da água preponderante para cerca de 100 mil habitantes, segundo o último levantamento do IBGE, em 2016.










Localização geográfica de Iguatu no estado do Ceará





Fonte: Adaptado de Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE) / Internet. Acesso em 11 de agosto de 2020.


Os dados a seguir mostram o Índice de Aridez (IA) cearense, elaborado pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). De acordo com os estudos, a região de Iguatu está exatamente em uma zona intermediária, entre os níveis semi-árido e sub-úmido seco. Os índices foram calculados com base na pluviometria dos anos de 1974 a 2016, para 196 estações pluviométricas cadastradas.










Classificação climática do Ceará segundo o índice de aridez







Fonte: Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) / Internet. Acesso em 10 de agosto de 2020.









Fonte: Adaptado de Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme) / Internet. Acesso em 10 de agosto de 2020.











Projetos sociais empoderam a população de baixa renda






Conhecendo bem esses dados numéricos no dia a dia, o time Enactus IFCE Iguatu trabalha com sistemas para irrigação de baixo custo e controle de umidade do solo, orientando pequenos agricultores sobre o uso racional da água. A Enactus é uma ONG (Organização Não Governamental) internacional presente em 36 países e, no Brasil, atua com 100 equipes. Desenvolve projetos sociais para empoderar a população de baixa renda, trabalhando em parceria com empresas como Amanco, Ford e Unilever, que financiam os projetos por meio de editais públicos. Em 2015, o time de Kevin ganhou uma seleção e deu início ao projeto "Mudas". De lá pra cá, foram muitas vitórias, incluindo dois prêmios consecutivos da Enactus, em 2017 e 2018, que os levou para encontros mundiais na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde apresentaram sua proposta de uso sustentável da água. Nos anos sucessivos, permaneceram entre os finalistas.








Time Enactus IFCE Iguatu. Reprodução/ Facebook




A proposta campeã consiste basicamente em dois sistemas: um microaspessor, para regar toda a área, e um sensor de umidade, para saber o momento ideal de irrigar a terra. O microaspersor é feito de palito de pirulito, prego e arame, entre outras ferramentas artesanais, abrangendo uma área média de 40 metros quadrados. No total, o custo fica em R$120, contrapondo-se a R$830, que seria o valor de um sistema-padrão.






Sistema de microaspersor. Foto: Divulgação



Já o sensor de umidade “Irrigas” indica quando é realmente necessário regar a produção, evitando assim o desperdício. “O projeto 'Mudas' pode ser usado em qualquer tipo de plantação. No caso das frutas, fizemos também um gotejador, porque a absorção da água ocorre pela raiz”, explica Kevin Brasil. Trata-se de um sensor de umidade colocado sob o solo com o custo de R$ 8, uma despesa dez vezes menor que um equipamento de mercado, que costuma sair por R$ 80. O "Irrigas" é feito com uma vela porosa de filtro, uma mangueira transparente e, no fim, uma cubeta de silicone, constituindo uma espécie de sensor de umidade. Esse sensor é enterrado a 20 cm e a 10cm de profundidade do solo. A indicação de 20 cm significa que a hortaliça estaria encharcada de água (ponto máximo), e 10 cm indica as raízes da planta. Antes de fazer a irrigação, o agricultor coloca a cubeta dentro do copo d´água. Se a água for puxada pela mangueira, significa que a terra precisa ser regada. Do contrário, não precisa irrigar, o que já possibilita economia de água.








Sensor artesanal de umidade “Irrigas”. Foto: Divulgação


O professor Newdmar Fernandes, coordenador do Departamento de Pesquisa, Extensão e Produção da IFCE, observa que o projeto “Mudas” melhorou a qualidade de vida na região, por ser um sistema de baixo custo que viabiliza o uso da água que estava parada nas cisternas. “Os agricultores podem alimentar a família e ainda gerar uma renda extra”, resume.










Projeto “Mudas” capacita agricultores cearenses e já planeja viagem para a Índia








Projetos paralelos como o “Mudas” e, na esfera governamental, iniciativas como a comitiva do Consórcio Nordeste posicionam o Ceará com vantagem no ranking de combate à seca. Segundo dados divulgados este ano pela Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme), o estado é o segundo do Nordeste brasileiro com melhor desempenho (69%), perdendo apenas para o Maranhão (72,1%).

Atualmente, o projeto “Mudas” acompanha famílias das cidades de Iguatu, Quixelô e Mombaça, cultivando principalmente hortaliças, como coentro, cebolinha, alface e rúcula, sem nenhum tipo de defensivo químico, apenas adubo natural e compostagem. São núcleos familiares formados por uma média de 4 pessoas. Quase todos vivem com programas sociais, principalmente o Bolsa Família: “Uma parte do nosso trabalho é capacitar esses agricultores para que tenham autonomia. Por isso, eles têm aula de empreendedorismo e de informática, além de simulações práticas para uso correto do sistema”, declara Kevin. Os agricultores também comercializam parte do que não consomem, vendendo pimenta de cheiro, alface, rúcula, coentro, e pimentão na cidade. A atividade gera uma renda extra em torno de R$800/mês.








Agricultor verifica umidade da terra com o “Irrigas”. Foto: Divulgação


Agora, além de ajudar às famílias, o “Mudas” já encontra também vocação no setor de empreendedorismo social, sobretudo, em escolas municipais do interior cearense, que costumam cultivar hortas para alimentar os alunos : “A cada 5 sistemas vendidos, doamos um para uma família sem condição de comprar”, revela Kevin. Atualmente, já atendem a 46 escolas. Os sistemas já foram instalados também em São Paulo, interior do Ceará, Rio de Janeiro e Piauí. Uma instalação completa do "Mudas" sai por R$280. Em Mombaça, no Ceará, venderam um pacote para 36 escolas, pelo valor total de R$ 8 mil: “Esse dinheiro serve para a abastecer nosso fluxo de caixa, sendo usado para pagar os colaboradores e doar alguns sistemas de irrigação “, explica.

Mas, o Brasil começa a ficar pequeno para os limites do “Mudas”, que já ensaia seus primeiros passos fora do país. Em parceria com a Sri Guru Gobind Singh College of Commerce, da Universidade de Delhi, estão organizando sua primeira instalação no exterior, para populações ribeirinhas da Índia. “Vamos abrir um financiamento coletivo para pagar os custos da viagem, provavelmente, no fim deste ano, dependendo da situação geral. Queremos estar presentes na instalação definitiva dos sistemas, inclusive, para fazer um documentário desse momento importante”, anima-se.










Um sol para cada ser humano






Na Índia, onde as temperaturas chegam a 50 graus em dias mais quentes, certamente, o uso bem direcionado da água na agricultura é bem-vindo. No nordeste do Brasil, o sol também é impiedoso, conforme destaca Kevin: “A partir de setembro, é um sol para cada ser humano”, brinca. Neste período, o líder da equipe Enactus IFCE Iguatu lembra que os cuidados com a agricultura devem ser redobrados, aumentando a sombra sobre as hortaliças e irrigando mais o solo: “No verão, fica um cenário contrastante: só um pedaço verde com as nossas hortas e, no fundo da paisagem, as folhas secas e o gado tostando no sol”, lembra.








Kevin testa microaspersor na irrigação do solo. Foto: Divulgação


Para o professor Newdmar Fernandes, do IFCE, projetos como o “Mudas” proporcionam um recomeço de vida importante para a população rural. Porém, ele acredita que, além dessas iniciativas, a esfera administrativa também deve marcar presença. Segundo Fernandes, é fundamental que os órgãos públicos cumpram o seu papel, estabelecendo e orientando sobre uma política de irrigação adequada: "A economia de água pode gerar benefícios não só para a agricultura como para outros setores da sociedade, que poderão usufruir deste excedente. Estudos recentes indicam que a agricultura responde por cerca de 70% do uso de toda a água doce no mundo”, afirma.

É inegável que, por milênios, a água foi (e ainda é) a grande protagonista na história da humanidade, inclusive na agricultura, e o sertão nordestino sabe as marcas que a falta dela trouxe para a sua história. Hoje, nota-se que parte desse enredo é reescrita por vários setores da sociedade, unindo os conhecimentos científico e tecnológico com a sabedoria popular. Talvez, seja um bom presságio para regar novos ciclos de fé e esperança, conforme preconiza Rachel de Queiroz, nesse trecho de O Quinze: “Enfim caiu a primeira chuva de dezembro. Dona Inácia, agarrada ao rosário, de mãos postas, suplicava a todos os santos que aquilo fosse 'um bom começo".










SERVIÇO






IFCE – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará

Rua Deoclécio Lima Verde, S/N – Areias II,
Iguatu – CE – Brasil
Site: https://ifce.edu.br
E-mail: gabinete.iguatu@ifce.edu.br


Enactus Brasil

Alameda Sarutaiá, 214 – Jardim Paulista,
São Paulo – SP – Brasil
Site: http://www.enactus.org.br/
E-mail: contatobr@enactus.org


Watly

Via Spilimbergo, 70, Passons,
Udine - Itália
Site: https://watly.co/
E-mail: web@watly.co